terça-feira, 29 de junho de 2010

Escrever como um homem

“Eu em relação a esses seus assomos fazia como anos antes vira a mamã fazer, que soltava uma risadinha e troçava carinhosamente do papá: Nem imaginas como ficaste cómico, com o fato novo sujo de lama e aquela cara de poucos amigos, e murmurares não sei que coisas terríveis sobre a mãe do jardineiro…! Levava-os, portanto, a brincar. Fingia que não tinham importância e que lhes achava piada, como se Fernando e eu fossemos dois esposos maduros que recordassem entre risadas alguma loucura da juventude, já inofensiva. Assim era. No mais fundo de mim mesma aspirava a reproduzir um modelo ideal de relação que combinasse a enraizada confiança dos antigos casais com a paixão e o entusiasmo dos amores recentes. Uma aspiração insensata, claro que sim: conciliar em todo o momento o melhor de cada uma das sucessivas etapas do matrimónio. Uma aspiração ainda por cima contraditória, porque me levava a desejar que o tempo passasse ao mesmo tempo muito depressa e muito devagar”.
Ignacio Martínez de Pisón, “O tempo das mulheres”, Teorema.

Acabado o exame de espanhol (9.4 em 10), terminado o “La ternura del dragón” (tão bom quanto um bom primeiro livro pode ser), precisava de voltar a ler em português. Uma vingança infantil, que acabou por se revelar inútil, porque estou presa ao Pisón. Não se abandona um autor assim de uma maneira qualquer, que ele pode ficar sentido e desatar a escrever mal.
Ignácio Martinez de Pisón tem aquilo que um escritor deve ter. Uma voz. Cada livro tem uma voz, com o seu timbre e sotaque próprios. Em "Carreteras Secundárias" e "La ternura del dragón" encontra o tom do longínquo e decisivo som da infância. Em “O tempo das mulheres” concentra várias vozes, todas femininas, provando, mais uma vez, que para reproduzir o mundo interior de uma mulher não é preciso sê-la. É preciso escrever bem. Há um horror de tempo, noutra vida, um rapaz quis insultar-me e disse-me que eu pensava como um homem. Foi um elogio que conservei em formol. Escrever como um homem, isso é que era. Mas isso também não existe. Outro homem, outra mulher, isso sim.

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