terça-feira, 24 de janeiro de 2017

A marcha das mulheres na primeira página do jornal canadiano Toronto Star, no domingo.



Para colocar palavras no discurso público é preciso saber usá-las. Por isso, essa capacidade materializa a mestria daqueles que dependem delas para viver. Os humoristas e os argumentistas conseguem escrever os nossos diálogos, colocar palavras na nossa boca durante meses, anos. A vaidade que não devem sentir quando se ouvem no supermercado ou no café. Os políticos criam discurso e sentido. Às vezes basta servirem-se de palavras que outros elegeram. A generalização de ‘geringonça’ a partir da utilização por Paulo Portas de uma expressão de Vasco Pulido Valente é o exemplo recente.

Nestas palavras e expressões há estabilidade significativa, eficácia. Caso diferente de situações que me causam algum ‘stress’ linguístico, como a expressão pós-verdade. Gosto da palavra, acho-a, lá está, eficaz. É contudo uma eficácia traduzida do inglês e, em grande medida, oriunda de uma realidade que não tem sido a portuguesa. É um estrangeirismo sem o ser. Talvez isso explique em parte porque tem tido utilizações tão livres e contestações tão diversas. Diz-se que é um modismo – sim, a expressão é do Brasil, lidem com isso – para designar a velha mentira. Não me parece.

Um grande número de pessoas que votaram em Donald Trump fê-lo ignorando partes substanciais do seu discurso. Isso aconteceu em eleitores desfavorecidos, como mostra este trabalho da Vox sobre o Obamacare, e em votantes das classes altas, o que inclui mulheres, lésbicas, minorias, que esta reportagem do The Guardian dá a ver. Essas pessoas escolheram ignorar partes da verdade, achando, como dizem algumas nestes trabalhos jornalísticos, que Trump não vai fazer exatamente o que disse que faria ou até que vai fazer coisas que não disse que faria. Esta é uma das faces da desvalorização dos factos, que é simultaneamente uma desvalorização da palavra. Outra face são, mais notoriamente, as notícias falsas e sua propagação fácil nas redes sociais povoadas de elogio à ignorância (a culpa não é delas, pobres redes). Partilham-se supostas notícias que moldam aquilo que se pensa: a cada um os seus factos. Factos alternativos, precisamente.

Engoli em seco quando vi Hillary Clinton começar um debate com Trump dizendo que os ‘fact-checkers’ do seu sítio na internet estavam a medir todas as mentiras do seu adversário. Era ela quem estava a perder-se nas mentiras dele, que se agarravam ao seu discurso como pastilha elástica, impedindo-a de ter uma voz, de marcar a agenda. Engoli em seco porque vislumbrei a derrota e hoje engulo em seco outra vez porque sei que aquilo que pensei foi “as pessoas querem lá saber da mentira”.

A pós-verdade é o fim da mentira. É o fim da mentira enquanto resultado de um escrutínio e perseguição da verdade, enquanto ato condenado moralmente por uma comunidade.

Não vivemos o fim dos tempos, esta convivência distendida com os factos já terá tido outros momentos altos, tenhamos sempre perspetiva e viremo-nos para a história e para a literatura em busca dela. Vai demorar. A batalha vai ser longa. Portanto, não esperemos que seja ganha por um publicitário ou publicitária. Viremo-nos para aquilo que leva tempo, lutar sempre levou tempo, ler sempre levou tempo. Ou seja, viremo-nos para as palavras e para a sua exigência. Se nisto houver um coração, vamos lá chegar. À pós-pós-verdade.


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