A marcha das mulheres na primeira página do jornal canadiano Toronto Star, no domingo.
Para colocar palavras no discurso
público é preciso saber usá-las. Por isso, essa capacidade materializa a mestria
daqueles que dependem delas para viver. Os humoristas e os argumentistas conseguem
escrever os nossos diálogos, colocar palavras na nossa boca durante meses,
anos. A vaidade que não devem sentir quando se ouvem no supermercado ou no
café. Os políticos criam discurso e sentido. Às vezes basta
servirem-se de palavras que outros elegeram. A generalização de ‘geringonça’ a
partir da utilização por Paulo Portas de uma expressão de Vasco Pulido Valente
é o exemplo recente.
Nestas palavras e expressões há
estabilidade significativa, eficácia. Caso diferente de situações que me causam
algum ‘stress’ linguístico, como a expressão pós-verdade. Gosto da palavra,
acho-a, lá está, eficaz. É contudo uma eficácia traduzida do inglês e, em
grande medida, oriunda de uma realidade que não tem sido a portuguesa. É um
estrangeirismo sem o ser. Talvez isso explique em parte porque tem tido utilizações
tão livres e contestações tão diversas. Diz-se que é um modismo – sim, a expressão
é do Brasil, lidem com isso – para designar a velha mentira. Não me parece.
Um grande número de pessoas que
votaram em Donald Trump fê-lo ignorando partes substanciais do seu discurso. Isso
aconteceu em eleitores desfavorecidos, como mostra este trabalho da Vox sobre o
Obamacare, e em votantes das classes altas, o que inclui mulheres, lésbicas, minorias,
que esta reportagem do The Guardian dá a ver. Essas pessoas escolheram ignorar partes
da verdade, achando, como dizem algumas nestes trabalhos jornalísticos, que Trump
não vai fazer exatamente o que disse que faria ou até que vai fazer coisas que não
disse que faria. Esta é uma das faces da desvalorização dos factos, que é simultaneamente
uma desvalorização da palavra. Outra face são, mais notoriamente, as notícias
falsas e sua propagação fácil nas redes sociais povoadas de elogio à ignorância (a culpa não é delas, pobres redes). Partilham-se supostas notícias
que moldam aquilo que se pensa: a cada um os seus factos. Factos alternativos,
precisamente.
Engoli em seco quando vi Hillary
Clinton começar um debate com Trump dizendo que os ‘fact-checkers’ do seu sítio
na internet estavam a medir todas as mentiras do seu adversário. Era ela quem estava
a perder-se nas mentiras dele, que se agarravam ao seu discurso como pastilha
elástica, impedindo-a de ter uma voz, de marcar a agenda. Engoli em seco porque
vislumbrei a derrota e hoje engulo em seco outra vez porque sei que aquilo que
pensei foi “as pessoas querem lá saber da mentira”.
A pós-verdade é o fim da mentira.
É o fim da mentira enquanto resultado de um escrutínio e perseguição da
verdade, enquanto ato condenado moralmente por uma comunidade.
Não vivemos o fim dos tempos, esta
convivência distendida com os factos já terá tido outros momentos altos,
tenhamos sempre perspetiva e viremo-nos para a história e para a literatura em
busca dela. Vai demorar. A batalha vai ser longa. Portanto, não esperemos que seja ganha por um publicitário ou publicitária. Viremo-nos para aquilo que leva tempo, lutar sempre levou
tempo, ler sempre levou tempo. Ou seja, viremo-nos para as palavras e para a
sua exigência. Se nisto houver um coração, vamos lá chegar. À pós-pós-verdade.
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