terça-feira, 24 de maio de 2016

por exemplo

“Depois de jantarmos, sob a lâmpada da cozinha, as cortinas a agitarem-se levemente nas janelas, as brasas a esmorecerem na lareira, era inverno, o meu braço, a minha mão grossa num só movimento, como um impulso, mas nem sequer um impulso, como a vontade que se tem por um momento e que se concretiza nesse mesmo momento, vontade de outra pessoa dentro de mim, vontade que não é pensada, mas que surge como uma chama e o meu braço, a minha mão grossa a atravessar uma distância recta e invisível, eu a olhar para o seu rosto e a abrandar um pouco dessa força, e a minha mão a acertar-lhe na face e na boca, as pontas dos meus dedos grossos a tocarem-lhe nos cabelos e na orelha, o som bruto da carne contra carne, ela virar a expressão da cara contraída sob a minha mão, e a minha mão a deixar de existir quando ela caiu despedida, o som desordenado do seu corpo a cair no chão, as suas costas a derrubarem um banco de madeira, eu logo a querer levantá-la, logo a querer segurá-la, logo a querer desfazer aquilo que tinha acabado de acontecer, mas a ficar parado e a esperar que acontecesse, não posso fazer nada, não posso voltar atrás, é impossível, e o seu corpo parou, comecei a sentir a memória ardente da sua face, boca, cabelos e orelha ainda na minha mão,  e todos os objectos da cozinha como se ardessem, a balança de pesar gramas de farinha, o azulejo com uma paisagem de Lisboa pendurado na parede, o cinzeiro de loiça brilhante, e as crianças a chorarem, as crianças a chorarem, o mais pequeno veio a correr e agarrou-se às minhas pernas (…)”



José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos, Bertrand Editora

Sem comentários:

Enviar um comentário