“Depois de jantarmos, sob a
lâmpada da cozinha, as cortinas a agitarem-se levemente nas janelas, as brasas
a esmorecerem na lareira, era inverno, o meu braço, a minha mão grossa num só
movimento, como um impulso, mas nem sequer um impulso, como a vontade que se
tem por um momento e que se concretiza nesse mesmo momento, vontade de outra
pessoa dentro de mim, vontade que não é pensada, mas que surge como uma chama e
o meu braço, a minha mão grossa a atravessar uma distância recta e invisível,
eu a olhar para o seu rosto e a abrandar um pouco dessa força, e a minha mão a
acertar-lhe na face e na boca, as pontas dos meus dedos grossos a tocarem-lhe
nos cabelos e na orelha, o som bruto da carne contra carne, ela virar a
expressão da cara contraída sob a minha mão, e a minha mão a deixar de existir
quando ela caiu despedida, o som desordenado do seu corpo a cair no chão, as
suas costas a derrubarem um banco de madeira, eu logo a querer levantá-la, logo
a querer segurá-la, logo a querer desfazer aquilo que tinha acabado de
acontecer, mas a ficar parado e a esperar que
acontecesse, não posso fazer nada, não posso voltar atrás, é impossível, e o
seu corpo parou, comecei a sentir a memória ardente da sua face, boca, cabelos
e orelha ainda na minha mão, e todos os
objectos da cozinha como se ardessem, a balança de pesar gramas de farinha, o
azulejo com uma paisagem de Lisboa pendurado na parede, o cinzeiro de loiça
brilhante, e as crianças a chorarem, as crianças a chorarem, o mais pequeno
veio a correr e agarrou-se às minhas pernas (…)”
José Luís Peixoto, Cemitério de
Pianos, Bertrand Editora
Sem comentários:
Enviar um comentário