segunda-feira, 24 de agosto de 2015

atadas pelos pés

Saber fazer uma mala é uma arte que envolve sacrifícios. Assim, os sapatos de salto alto ficaram em casa. Em seu lugar, uns rasos que tenho por elegantes e um vestido vermelho que acabaram por não ver a luz do dia ou da noite. O peso e volume também ditaram que “Anna Karenina” não me acompanhasse. As peças de Tchekhov foram e a Judith Butler também. “Gender trouble” traduzido para espanhol, convertido em “El género en disputa”. Um pouco como fazer uma mala, a Butler em espanhol compensa o feio que soa com a clareza bizarra que ganhei ao trocar o inglês nativo da obra pela proximidade linguística.

Não sei se foi da bagagem, mas as mulheres russas apareceram-me com uma clareza que quis recusar por pudor em fabricar juízos tão rápidos, mas que não consegui aplacar por muito tempo. À minha volta, um exército de mulheres fazia turismo – sobretudo em Moscovo, onde os turistas são praticamente apenas russos – impecavelmente vestidas e penteadas. E de saltos altos. Agulhas, tacões, plataformas. Muitas sandálias de salto agulha, creio que posso estabelecer a prevalência. O ‘overdressing’ é um conceito pouco manuseado por aquelas bandas. Quando observava os grupos dos casamentos que enxameiam os monumentos para tirar fotografias, noivos incluídos, as comuns turistas nacionais só ligeiramente se distinguiam por um quê menos de brilho.

A indumentária gritava uma clivagem de género tão primária que apetecia esfregar os olhos e olhar de novo. Os homens com quem aquelas mulheres vaporosas caminhavam de mãos dadas usavam roupa desportiva, ténis, muitas vezes, calções. E não, não é ‘kitsch’. É triste. Questiono-me se posso colocar as coisas em termos de escala, de moderação, de otimização de saltos altos confortáveis (sim, existem). Quem sou eu para julgar mulheres que fazem turismo de saltos altos se eu vou trabalhar tantas vezes de saltos altos, mesmo que os julgue confortáveis? Provavelmente, não iria a uma entrevista de trabalho sem eles. Mesmo com dúvidas, digo, os sapatos de salto alto com que gosto de me calçar, que gosto de ver em pés alheios, se usados em permanência não são bonitos, nem são sapatos, são grilhetas. Não me sai da cabeça que com aqueles saltos inevitavelmente não se chega muito longe. 





Esta imagem interpelou-me no Museu de História Política, em São Petersburgo. Guardei-a, mesmo não sabendo de quem se trata, nem do que tratava este segmento da exposição (uma amálgama de temas, em que a secretária de Lenine e o espólio de uma bailarina famosa conviviam com 'memorabilia' dos Jogos Olímpicos de Moscovo). Insufla uma esperança inexplicável, aquela que se tem perante a inquietação por canalizar. 

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