sexta-feira, 3 de abril de 2015

lost

Hoje as cerejeiras estarão em flor. Não timidamente como as vi, mas na apoteose da sua efemeridade espetacular que os japoneses tanto valorizam.
Há uma semana queria não pensar no “Lost in translation”. Mas era inevitável. Parece fazer pouco sentido, quando penso nisso. Em Nova Iorque abracei centenas de filmes, numa voragem, que era doce e calma. E agora, ali estava eu em Tóquio, sem querer pensar num único filme.
A viagem começou em Quioto, que vi praticamente de dentro de uma carrinha. Entrei em sítios onde os outros não podem ir – o antigo palácio imperial não é usado, mas é quase inacessível – e não fui onde os outros estavam. Parámos para comer numa loja de conveniência, a típica ‘lunchbox’, uma marmita à japonesa, para quem não tem tempo, como nós. Escolhi a combinação mais sortida que encontrei, a mais parecida com o exemplar que tinha visto no guia de viagens. Os colegas demoravam a escolher, realmente é difícil, e reparei que pessoas com aspeto debilitado, algumas em cadeiras de rodas percorriam os corredores da loja. Estávamos em frente a um hospital.
Em Quioto foi doloroso não parar para passear naquele parque grande, dividido por um rio. Ainda não fui ver como se chama. Uma enorme língua de verde e de água a dizer ‘descansa só um bocadinho os teus olhos aqui’. Aquele parque parecia existir mais para ser visto do que percorrido, um exercício de respiração no espaço. Inspira e demora o dobro do tempo a expirar.
Seguimos no ‘comboio-bala’ para Tóquio e o meu stress era tanto pelo trabalho para enviar com o computador a falhar que não agradeci nada tamanha alta velocidade.
Depois Tóquio. O filme a martelar na minha cabeça. Sai para jantar tão tarde que me deparei com tudo fechado e, desta vez, a refeição de loja de conveniência já não teve graça. À segunda noite, o jet leg, que tarda mas não falha, instalou uma espécie de cansaço diletante de que ainda não me livrei.
E aquela rapariga do filme que tinha todo o tempo para ficar parada, estendida em cima da cama de hotel, na atividade mais nobre a que o alojamento limpo e anónimo concede. Também tinha tempo para aquela coisa que, confirmei com várias fontes, é mesmo um lugar-comum de quem tem o privilégio de chegar lentamente a Tóquio, chegar-se lentamente a Tóquio: deambular pelas ruas. Fiz o contrário, claro. Sempre a correr, a ver tudo da carrinha novamente, com a fome estranha de quem está longe de casa. Até que a senhora que a embaixada destacou para estar connosco se lembrou que o conforto alimentar estava ali ao lado. Entrámos numa espécie de tasca ao lado do hotel, para a qual já tinha sentido atraída. E uma cozinha cheia da azáfama masculina trouxe-me o que só por conveniência posso chamar comida. Ramen, um caldo com noodles, carne, vegetais, ovos pouco cozidos. E paz.
Agradeci à insónia uma viagem ao mercado do peixe. Viagem, efetivamente não exagero. Era tudo tanto e tão bonito, mas retenho a beleza dos polvos mais perfeitos que alguma vez vi. Não há nenhuma cena destas no “Lost in translation”, pensei, triunfante.

No último dia, lá estava outra vez. Só queria despachar o trabalho para poder ir ao sítio do filme, ao lugar em que a rapariga ouve palavras que não partilha com ninguém. Não consegui. Não parava de escrever, mas o tempo também não parava de passar. Até que os meus companheiros de voo voltaram. E lá estava eu, na mesma cadeira, a dedilhar no computador. Atravessei Tóquio em direção ao aeroporto, triste e ligeiramente derrotada. Só ligeiramente porque, Deus me ajude, vou voltar. 

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