Hoje as cerejeiras estarão em
flor. Não timidamente como as vi, mas na apoteose da sua efemeridade
espetacular que os japoneses tanto valorizam.
Há uma semana queria não pensar
no “Lost in translation”. Mas era inevitável. Parece fazer pouco sentido, quando
penso nisso. Em Nova Iorque abracei centenas de filmes, numa voragem, que era
doce e calma. E agora, ali estava eu em Tóquio, sem querer pensar num único filme.
A viagem começou em Quioto, que
vi praticamente de dentro de uma carrinha. Entrei em sítios onde os outros não
podem ir – o antigo palácio imperial não é usado, mas é quase inacessível – e
não fui onde os outros estavam. Parámos para comer numa loja de conveniência, a
típica ‘lunchbox’, uma marmita à japonesa, para quem não tem tempo, como nós.
Escolhi a combinação mais sortida que encontrei, a mais parecida com o exemplar
que tinha visto no guia de viagens. Os colegas demoravam a escolher, realmente
é difícil, e reparei que pessoas com aspeto debilitado, algumas em cadeiras de
rodas percorriam os corredores da loja. Estávamos em frente a um hospital.
Em Quioto foi doloroso não parar
para passear naquele parque grande, dividido por um rio. Ainda não fui ver como
se chama. Uma enorme língua de verde e de água a dizer ‘descansa só um bocadinho
os teus olhos aqui’. Aquele parque parecia existir mais para ser visto do que percorrido, um
exercício de respiração no espaço. Inspira e demora o dobro do tempo a expirar.
Seguimos no ‘comboio-bala’ para
Tóquio e o meu stress era tanto pelo trabalho para enviar com o computador a
falhar que não agradeci nada tamanha alta velocidade.
Depois Tóquio. O filme a martelar
na minha cabeça. Sai para jantar tão tarde que me deparei com tudo fechado e,
desta vez, a refeição de loja de conveniência já não teve graça. À segunda
noite, o jet leg, que tarda mas não falha, instalou uma espécie de cansaço
diletante de que ainda não me livrei.
E aquela rapariga do filme que
tinha todo o tempo para ficar parada, estendida em cima da cama de hotel, na
atividade mais nobre a que o alojamento limpo e anónimo concede. Também tinha
tempo para aquela coisa que, confirmei com várias fontes, é mesmo um lugar-comum
de quem tem o privilégio de chegar lentamente a Tóquio, chegar-se lentamente a
Tóquio: deambular pelas ruas. Fiz o contrário, claro. Sempre a correr, a ver
tudo da carrinha novamente, com a fome estranha de quem está longe de casa. Até
que a senhora que a embaixada destacou para estar connosco se lembrou que o
conforto alimentar estava ali ao lado. Entrámos numa espécie de tasca ao lado
do hotel, para a qual já tinha sentido atraída. E uma cozinha cheia da azáfama
masculina trouxe-me o que só por conveniência posso chamar comida. Ramen, um
caldo com noodles, carne, vegetais, ovos pouco cozidos. E paz.
Agradeci à insónia uma viagem ao
mercado do peixe. Viagem, efetivamente não exagero. Era tudo tanto e tão
bonito, mas retenho a beleza dos polvos mais perfeitos que alguma vez vi. Não
há nenhuma cena destas no “Lost in translation”, pensei, triunfante.
No último dia, lá estava outra
vez. Só queria despachar o trabalho para poder ir ao sítio do filme, ao lugar em
que a rapariga ouve palavras que não partilha com ninguém. Não consegui. Não
parava de escrever, mas o tempo também não parava de passar. Até que os meus
companheiros de voo voltaram. E lá estava eu, na mesma cadeira, a dedilhar no
computador. Atravessei Tóquio em direção ao aeroporto, triste e ligeiramente
derrotada. Só ligeiramente porque, Deus me ajude, vou voltar.
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