Biblioteca de Estugarda, fotografia de Ana Nunes da Silva |
Guardo já algumas bibliotecas no
meu coração. Tento ordená-las e coloca-las bonitas numa estante da memória. As
coleções vivem do fetiche e do mimo, numa contradição feliz. Somos atraídos ao
objeto desejado numa vertigem e precisamos de o tocar, ele tem que existir
fisicamente e temos de ficar com um vestígio desse contacto ou ele não conta.
Mas depois colocamos o objeto colecionado em ordem com os outros, catalogamos,
arranjamos uma estante ou uma vitrine para o dispor, demoramo-nos a limpar o
pó, visitamo-lo e conversamos com ele. É por isso que os livros em papel não
vão desaparecer, mesmo que diminuam consideravelmente, porque o seu
desaparecimento levaria consigo as bibliotecas, as públicas e as privadas, e a
sensualidade do toque contaminada pelo amor de cuidar.
Não há lugares prováveis para uma
biblioteca impressionante. Estugarda tem uma biblioteca impactante. A cidade da
Mercedes-Benz tem uma biblioteca linda, que cega de luxúria branca luminosa. Foi
um projeto controverso, é uma biblioteca que se continua a discutir, anos
depois de ter sido construída. Tão bom. A biblioteca do Trinity College, em
Dublin, é obviamente deslumbrante. É amá-la, sabendo que todos o fazem. A nova
biblioteca de Amesterdão encontrou-me numa viagem de acerto de contas, de
querer estar sossegada num lugar de vício e pecado. Para quem quer pecar em
silêncio, não há como invejar um lugar imenso, superiormente organizado, que se
desdobra em pequenas escalas que zelam por todos se sentirem bem. Uma suposta
tempestade de neve impediu-me de entrar na Biblioteca do Congresso em
Washington, mas pelo menos tentei, até perguntei ao senhor com a metralhadora
na mão, tal era o grau de negação. Todos os edifícios federais estavam fechados
e a minha tristeza não mudou nada.
Estar numa biblioteca é um
privilégio. E é um privilégio muito equivalente estar numa destas bibliotecas
cheias de sainete ou estar na nossa biblioteca municipal. É o luxo do tempo, da
reflexão, da leitura e do pensamento, e de nos sentirmos acompanhados nisso.
Unidos pela qualidade do silêncio, estamos todos no mesmo barco e, livres, vamos
todos para sítios diferentes.
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