sexta-feira, 30 de maio de 2014

som do silêncio


Biblioteca de Estugarda, fotografia de Ana Nunes da Silva



Guardo já algumas bibliotecas no meu coração. Tento ordená-las e coloca-las bonitas numa estante da memória. As coleções vivem do fetiche e do mimo, numa contradição feliz. Somos atraídos ao objeto desejado numa vertigem e precisamos de o tocar, ele tem que existir fisicamente e temos de ficar com um vestígio desse contacto ou ele não conta. Mas depois colocamos o objeto colecionado em ordem com os outros, catalogamos, arranjamos uma estante ou uma vitrine para o dispor, demoramo-nos a limpar o pó, visitamo-lo e conversamos com ele. É por isso que os livros em papel não vão desaparecer, mesmo que diminuam consideravelmente, porque o seu desaparecimento levaria consigo as bibliotecas, as públicas e as privadas, e a sensualidade do toque contaminada pelo amor de cuidar.
Não há lugares prováveis para uma biblioteca impressionante. Estugarda tem uma biblioteca impactante. A cidade da Mercedes-Benz tem uma biblioteca linda, que cega de luxúria branca luminosa. Foi um projeto controverso, é uma biblioteca que se continua a discutir, anos depois de ter sido construída. Tão bom. A biblioteca do Trinity College, em Dublin, é obviamente deslumbrante. É amá-la, sabendo que todos o fazem. A nova biblioteca de Amesterdão encontrou-me numa viagem de acerto de contas, de querer estar sossegada num lugar de vício e pecado. Para quem quer pecar em silêncio, não há como invejar um lugar imenso, superiormente organizado, que se desdobra em pequenas escalas que zelam por todos se sentirem bem. Uma suposta tempestade de neve impediu-me de entrar na Biblioteca do Congresso em Washington, mas pelo menos tentei, até perguntei ao senhor com a metralhadora na mão, tal era o grau de negação. Todos os edifícios federais estavam fechados e a minha tristeza não mudou nada.

Estar numa biblioteca é um privilégio. E é um privilégio muito equivalente estar numa destas bibliotecas cheias de sainete ou estar na nossa biblioteca municipal. É o luxo do tempo, da reflexão, da leitura e do pensamento, e de nos sentirmos acompanhados nisso. Unidos pela qualidade do silêncio, estamos todos no mesmo barco e, livres, vamos todos para sítios diferentes.

Sem comentários:

Enviar um comentário