A reportagem da jornalista Cândida Pinto para a série ‘momentos de mudança’ é uma peça jornalística a namorar o perfeito, tendo para cúmulo uma realização que a aproxima do cinema documental. A Ilga Portugal atribui-lhe um dos Prémios Arco-Íris, que distinguem pessoas e instituições que tiveram um papel na luta contra a discriminação com base na orientação sexual e na identidade de género (a lista de todos os premiados, aqui). A reportagem de Cândida Pinto terá, sem surpresa, outros prémios, mas o maior é temo-la visto, é para esse prémio que os jornalistas trabalham.
Naquela reportagem, entramos na vida de Ivo e Hélder nos dias que circulam o seu casamento. Um casamento simples, para onde um dos noivos vai de autocarro, na simplicidade que é quase a medida de um país, fora do eixo Parque das Nações – Avenida de Roma – Cascais (e o equivalente no Porto). Gastam-se em trabalhos mal pagos em que começaram quase crianças, compensam-se em ocupações felizes, dançam num rancho folclórico.
O mérito da reportagem começa no Ivo e no Hélder, que não são um casal burguês urbano, não entram no cliché dos gays com poder de compra (apesar de até gostarem de lá chegar, como confessam, porque todas as pessoas querem viver melhor). Não há orientações sexuais para estratos sociais. Estima-se que uma em cada dez pessoas é gay, lésbica ou bissexual. Entrem numa sala de aula, num escritório ‘open space’, e contem até dez. Foi um exercício que me ensinaram numa formação de voluntários da Ilga.
Ivo e Hélder passam a lua-de-mel em Fátima. No dia a seguir a estarem unidos pelo casamento em nome da República Portuguesa vão a Fátima e conseguem que as suas alianças sejam benzidas. Choram de emoção à passagem da imagem da Virgem Maria. Uma senhora junto deles apercebe-se da circunstância de recém-casados, felicita-os.
Ivo e Hélder dizem que não vão a Fátima ver ‘os padres’, mas pela sua Fé. Nesta frase, desfaz-se a contradição que os não crentes apontam aos crentes. Sim, somos católicos, estamos na Igreja que nos deu o Evangelho, estamos na Igreja mais próxima da nossa cultura. Há algo de errado na instituição que exclui as mulheres de muitas tarefas e gays e lésbicas de quase tudo. Sim, é profundamente errado. E serão os católicos a fazer com que isso mude, um dia. Pode ser que não o vejamos ainda nos nossos dias. Ou pode ser que sim. Há 50 anos as missas eram celebradas em latim. Alguém acha concebível participar de uma celebração da qual não entende uma palavra? Não, claro que não. Mas foi há tão pouco tempo. Isso e muitas outras coisas mudaram com o concílio Vaticano II. Outras mudanças virão. Jesus Cristo ensina-nos isso. Ele colocou isso nos nossos corações, no Amor que rege as nossas ações. As nossas melhores ações, pelo menos.
Feliz Ano Novo.
*título do último romance de Rui Cardoso Martins, editado pela D. Quixote.
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